Uma morte lenta da mente

Das doenças progressivas e incuráveis a doença de Alzheimer pode ser a mais cruel, porque mata suas vítimas duas vezes. Primeiro ocorre uma morte lenta da mente: nomes, datas, lugares, uma vida inteira vai se apagando. Simples tarefas como amarrar sapatos, cortar carne, dizer as horas, tornam-se intransponíveis. Incapaz de caminhar e controlar funções elementares, a vítima se curva numa posição fetal, gradualmente entra em coma, e morre. Em média o declínio ocorre em 8 anos. “Perder a capacidade mental, a habilidade de levar uma vida construtiva, é pior que o câncer”, diz uma portadora em estágio inicial.

Epidemiologistas chamam as demências de a doença do século. No Brasil, o IBGE projetou para 2010 20 milhões de idosos, 5% dos quais com alguma forma de demência. Nos Estados Unidos foram 3 milhões, 7% dos 27 milhões de pessoas acima de 65 anos de idade. O custo nos Estados Unidos é estimado em 80 bilhões de dólares. O custo é muito aumentado pelo aspecto da morte lenta da mente antes da morte do corpo. As causas são em parte conhecidas, porém complexas para explicar. Atinge todos os grupos étnicos, sociais e se expande com o crescimento da população idosa. Alzheimer e outras demências associadas são a quarta causa de mortes entre idosos depois do infarto cardíaco, câncer e derrame. Pode ser devastadora para as famílias exaustas com a necessidade de cuidados contínuos de ente querido que nem lembra mais quem eles são.

Em 1906, Alois Alzheimer encontrou uma mulher que apresentava perda de memória, desorientação e alucinações, embora tivesse somente 51 anos de idade. Após sua morte, descobriu no cérebro massas de fibras de células nervosas torcidas que ele chamou de “emaranhados neurofibrilares”. Ele havia enxergado a causa da morte lenta da mente. A doença de Alzheimer é responsável por mais da metade de todos os casos de demência senil. Os outros são gerados por pequenos derrames e outras condições, algumas tratáveis, como depressão, distúrbios da tireóide, deficiências de vitaminas, reações a drogas, anemia e alcoolismo.

A doença de Alzheimer geralmente ocorre depois dos 65 anos. Pessoas idosas que têm problema para lembrar onde colocam seus óculos ou não conseguem lembrar nomes rapidamente podem ter esquecimento normal da idade. A perda da memória grave é a operacional, afeta o trabalho e a vida social. Embora a falha da memória seja o mais comum sinal precoce, problemas com a fala ou mudanças na personalidade, podem estar entre os primeiros sintomas. Alguns pacientes querem ir à cozinha e acabam no quarto. Mais tarde, os primeiros sinais de verdadeira demência aparecem. A vítima tem dificuldade em fazer julgamentos apropriados. Veste-se para inverno no verão. Confunde torneiras fria e quente do chuveiro. Finalmente, torna-se incontinente, esquecendo-se onde fazer suas necessidades. Algumas vítimas podem ficar agitadas e agressivas. O cônjuge é forçado a tornar-se um “santo”. No último estágio, a vítima perde completamente a habilidade de falar, apenas dizendo “sim” ou “tá bom” a tudo. Torna-se incapaz de andar e desenvolve contraturas. O declínio tem ritmo consistente. Geralmente, a morte é o resultado de uma pneumonia, causada por aspiração de comida para os pulmões. Pacientes se afogam e têm que ser alimentados com comida liqüefeita e finalmente, através de sondas.

O diagnóstico de certeza da doença de Alzheimer é feito com uma biópsia cerebral, que revela os emaranhados neurofibrilares. Mas os médicos raríssimamente recomendam este procedimento. Eles eliminam outras possíveis causas; afastam anormalidades da tireóide, deficiência de vitamina B12, derrames, hidrocefalias ou tumores cerebrais. Testes de memória, atenção, linguagem, habilidade espacial e raciocínio abstrato demonstram a demência.

Helena imediatamente esquece o enredo do último show de televisão que assistiu e tem problemas ao ler o jornal, perde a essência da história depois de duas ou três sentenças. Ela há muito tempo já esqueceu o nome e telefone de seus parentes, e não consegue mais lembrar como procurá-los. A pressão dos cuidados intensivos torna-se demais para a maioria das pessoas, que precisam de assistência 24 horas por dia junto a uma casa de saúde ou centro especializado. Importante é manter os pacientes fora da cama e engajados em atividades a maior parte do tempo possível. Se forem mantidos ativos fisicamente, poderão protelar os estágios avançados vegetativos.

Em 10 a 15% dos casos de Alzheimer os filhos têm um risco de 50% de desenvolver a doença. Nos casos genéticos os sintomas aparecem antes dos 65 anos.  Há apenas alguns anos atrás, Antonio era um bem sucedido advogado numa companhia petroquímica. Hoje, aos 55 anos, ele vaga pela casa, passando o aspirador, lavando a louça e assistindo televisão. “É de partir o coração vê-lo incapaz de escolher o que irá vestir de manhã”, diz a esposa Cláudia. Com o surgimento da doença, o marido tornou-se depressivo e absorto, e ela teve de retirar a carteira de motorista porque seus reflexos tornaram-se lentos; e o dinheiro porque estava deixando troco nas lojas e restaurantes. “Eu me tornei uma esposa controladora”. Caso a situação venha a ficar difícil, ela pretende mandá-lo para uma clínica, que será paga com muita dificuldade. Bárbara teme a mudança da qualidade de vida. “Eu sempre fui otimista”, diz ela, “mas eu não espero mais ansiosamente pelo amanhã”.

Este artigo foi elaborado a partir de um artigo em uma Newsweek nos anos 1980, e adaptado nos anos 1990 por parentes de pacientes, antes de existirem os remédios específicos para doença de Alzheimer, que melhoraram muito o manejo destes pacientes. No século XXI ainda apareceu a possibilidade de tratamento preventivo e anti-inflamatório. Mesmo assim, as pessoas podem ter uma idéia de como é a história natural desta doença, sem os tratamentos disponíveis hoje em dia, que melhoraram a qualidade de vida de todos envolvidos.

Dr Paulo Bittencourt

www.dimpna.com

imagem: Hippocampus, onde inicia a doença de Alzheimer. Por Greg Dunn, de Philadelphia. Veja mais imagens em www.gregadunn.com