A morte de Charlie Watts e a solidão de nós todos

A morte de Charlie Watts

Talvez a morte de Charlie Watts tenha sido marcante para mim, pessoalmente, devido aos Rolling Stones estarem presentes em meu dia a dia, na prática todo dia, desde meus 16 ou 17 anos de idade, ou seja, há 50 anos. Os Beatles, por exemplo, duraram pouquíssimo tempo. O choque da morte de Charlie Watts foi bem descrito por Tracy Chapman, a cantora, quando disse que os 3 Stones originais faziam parte da paisagem, como se fossem estas grandes rochas em um morro ou em uma praia em frente à sua casa. É difícil imaginar o mundo sem um deles. É inimaginável sem os 3.

Da morte de Elvis Presley, Frank Sinatra ou Raul Seixas, eu não tenho memória. John Lennon eu lembro perfeitamente, mas ele foi cedo, muito cedo. Seu problema de saúde era a heroína. Aliás, a heroína parece ser um grande fator de risco para a morte de roqueiros, junto com o cigarro, álcool e sexo oral. David Bowie faleceu devido ao cigarro, mas ficou mais tempo. Musicalmente foi tão importante para mim quanto Eric Clapton e Bob Dylan, porém criou menos lastro emocional porque passou grande parte do tempo em outros ambientes que não o rock. Como ocorreu com os Beatles, que desapareceram em suas carreiras solo.

Meu negócio sempre foi rock. Meus companheiros de dia a dia sempre foram os Stones. No carro, no iPod, no Walkman, nos aparelhos de som que ocuparam a sala da minha casa, no Youtube quando faço exercício no elíptico, e no celular quando tenho insônia. Os Stones, em especial os 3 originais, Mick, Keith e Charlie, pareciam imortais. Ron Wood e Keith Richards já disseram que sem Charlie os Stones não andam, ele era o motor, o coração que batia. Este é o pior cenário, o apocalipse, que os Stones não consigam mais funcionar sem Charlie. Vamos esperar que Mick continue sendo inglês, materialista, objetivo e seco nas emoções, e que consiga fazer os Stones continuarem.

Quem podia imaginar que justo o mais bem comportado dos 3, ou dos 6, se contarmos Ron Wood, Bill Wyman, Mick Taylor, quem podia imaginar que justo Charlie iria antes? Muito provavelmente vitimado pelo mesmo câncer que levou George Harrison e atingiu o presidente Lula, diretamente ligado a cigarro, bebidas quentes, ao HPV e ao câncer de colo de útero das mulheres, ou seja, ao sexo oral feito por homens. Mais do que nunca, Keith parece imortal. Décadas de álcool, heroína e cocaína, e lá está ele. Como pode este homem ainda estar não só vivo, como funcionando? Mick deve ser o que vai mais longe. Filho de professor de ginástica, parece o mais saudável. Foi o menos exposto à drogas pesadas, não usou heroína nem crack, nem cigarros por muito tempo, nem álcool. Ron Wood não deve ir longe. Tem câncer de pulmão e já quase empacotou-se duas vezes. Foi usuário pesado de cocaína, crack, cigarros e heroína.

Então, conforme meus 70 anos vão se aproximando, eu preciso perceber que sobram algumas destas figuras de minha constelação mental, todos próximos aos 80 anos de idade. Roberto Carlos e Chico Buarque no Brasil, nenhum deles muito crítico para mim, mas presentes nas palavras de tanta gente em volta. E Dylan, McCartney, Jagger e Richards, as 4 maiores estrelas do firmamento do meu lazer durante uma vida toda que ainda estão por aí. Dylan continua tocando e gravando. Não resolvi ainda se vou continuar ouvindo e querendo saber de Eric Clapton. Sua adesão ao negacionismo fascista me fez perder boa parte do tesão pela sua guitarra.

E o que esperar enquanto meus 70 se aproximam e este pessoal passa pelos 80? A solidão, uma das maiores características da idade mais avançada, tão enfatizada pela morte de Charlie Watts, fica muito mais intensa sem estas figuras tão presentes em nossas mentes, pelo menos na minha. Eric não deve ir muito longe. Já não caminha bem há alguns anos, resultado de muito álcool e cigarros, e teve muitos anos de heroína e cocaína. Dylan teve anfetaminas na juventude, mas só. Parece que vai muito longe. Ringo teve cigarros e álcool, mas está saudável há décadas. McCartney viveu caretinha, fumando sua maconha, a vida toda. Tem a pele meio estragada, é muito branco, mas também pode ir longe.

Para mim, pessoalmente, seria importante que estas estrelas do meu firmamento continuassem produzindo, como eu, que uso o trabalho e a produção física e intelectual como um norte na manutenção da boa saúde. Minha esperança é que os Stones não parem, e que Dylan e McCartney continuem produzindo. Se eles forem até os 90, imagino que eu vá até os 80.

Dr Paulo Bittencourt