Como eu inventei a toxina botulínica para enxaqueca crônica

Trapezius

Era o fim dos anos 1990, e pacientes meus já recebiam injeções de Botox, creio que era a única marca de toxina botulínica no mercado na época, desde 1992. Porém, vinha a famosa Dra Elizabeth MAB Quagliato, de Campinas, aplicar casos complexos aqui, enquanto que os casos que pudessem viajar iam buscar seus cuidados ou os do Dr Luiz Augusto em São Paulo. Em torno desta época outros serviços estavam sendo estabelecidos de aplicação de toxina botulínica no Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e o Dysport, outra marca, foi introduzido no mercado.

O primeiro caso meu a ser injetado com toxina botulínica pela Dra Elizabeth, foi uma moça com um distúrbio muito complexo de distonia de musculatura para-vertebral, que andava completamente torta para trás, lá em 1992, de forma que seu osso occipital, do crânio, encostava no seu calcanhar. Um caso digno de apresentação no Fantástico. Desde esta época eu já tinha a noção clara da possibilidade de injeção para-vertebral da toxina. Também desde esta época, início dos anos 1990, em conjunto com a fisioterapeuta Lucymara Silva, eu vinha tratando grande parte dos meus pacientes com dor de cabeça intratável com fisioterapia para a musculatura para-vertebral. Eu havia chegado a esta conclusão examinando pacientes que chegavam à clínica como enxaqueca, mas que na investigação diagnóstica era claro que nem tinham enxaqueca nem dor facial atípica. Tinham contraturas para-vertebrais.

Depois de 15 anos destas observações clínicas detalhadas, e de 5 anos de uso de toxina botulínica com todo o cuidado, criei coragem e resolvi desenvolver um protocolo de tratar os pacientes mais intratáveis com Botox. Liguei para Lucymara e duas outras fisioterapeutas que haviam trabalhado comigo e perguntei-lhes, se houvesse um músculo culpado nestas pacientes, a maioria absoluta mulheres, qual seria. Responderam na lata: o trapézio. Fui ao livro de anatomia que herdei do meu pai, o Testut-Latarjet, e estudei o trapézio, e desenvolvi um protocolo de injeção em conjunto com a Dra Elizabeth. porém, ela não quis mais participar. Convenceu-me a ir à UNICAMP, onde injetei 16 pacientes em um dia, e passei a injetar meus próprios pacientes, de todos os tipos, em 1998.

Com muito cuidado, consentimento informado, apliquei 5 casos, e apresentei em um congresso brasileiro de enxaqueca no Hotel Glória no Rio de Janeiro, em 2001. Como ocorre até hoje, dá certo em todos, porém existem duas complicações. Os casos muito graves, como aqueles 5 primeiros, sempre tem complicações psiquiátricas, que podem piorar quando a gente mexe com um procedimento invasivo. E eles podem ter certas fraquezas e incompetências musculares, que levam o pescoço a parecer que fica caído, durante uns 15 dias. São complicações temporárias da minha forma de aplicação, que tem quase 100% de eficácia.

Porém, minha aplicação é complexa, utiliza eletromiografia e ecografia, e é realizada dentro do músculo. Os fabricantes de toxina botulínica tomaram uma rota completamente diferente. Nesta época estavam começando a vender rios de Botox para rugas, e preferiram ir pela rota de que a dor era neurálgica, e que o efeito era analgésico, e que bastava injetar próximo à dor. Vários anos depois, introduziram a injeção de toxina para dor de cabeça com um protocolo de dor, de forma muito fácil de aplicar, então não só neurologistas, mas também dentistas, até para-médicos estão hoje em dia aplicando.

Dr Paulo Bittencourt

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