A diferença entre surto e epidemia de febre amarela explicada pela epidemiologia

Surto e epidemia de febre amarela tem sido utilizados intercambiadamente para não assustar e criar pânico em populações. Por outro lado, também tem sido utilizado para esconder da população a verdade. Surto é originado em uma única fonte. Epidemia é quando o surto se multiplica em vários. Uma criança pega de um mosquito que pegou de um macaco em um parque e outro mosquito passa para 10 contatos. Se para por aí é um surto. Embora eu tenha capítulos de livros e artigos que envolvem neuroepidemiologia durante grande parte da minha vida profissional, preferi traduzir estas definições do inglês, direto do original do Centers for Disease Control americano. No surto, todos os casos são relacionados com a mesma fonte.  Na epidemia outros mosquitos passam para outras pessoas ou outros macacos que vão para outras localidades.

Endemia é quando atinge todo um país ou uma zona geográfica, e pandemia é quando atinge múltiplos países ou zonas geográficas. Surto (outbreak) por vezes é utilizado para evitar pânico na população. Então no Brasil temos uma endemia, ficam aparecendo casos aqui e ali, até na pacata, fria e limpa Curitiba.

Uma curva epidêmica ou histograma de incidência mostra a evolução do surto e epidemia de febre amarela ou outra doença em um gráfico com os casos de diagnóstico clínico, de diagnóstico laboratorial confirmado e de mortes. Período epidêmico é o tempo que dura uma epidemia. Tríade epidemiológica é o modelo tradicional das causas das doenças infecciosas, que tem um agente externo, um hospedeiro suscetível, e o ambiente que coloca os dois em contato. Epidemiologia é o estudo dos determinantes da saúde nas populações, e sua aplicação para o controle dos problemas da saúde. A epidemiologia analítica usa grupos de comparação para testar hipóteses e solucionar problemas, como por exemplo, o que causou a epidemia de microcefalia do Pernambuco, que, certamente não foi o vírus da Zika isoladamente. Na Colômbia ocorreram surtos sem a intensidade e gravidade  da microcefalia associada. A epidemiologia descritiva organiza e descreve as características dos que ficam doentes, onde e quando eles adoecem. A epidemiologia de campo trabalha nos locais das doenças.

https://www.cdc.gov/ophss/csels/dsepd/SS1978/Glossary.html

Principles of Epidemiology and Public Health Practice, Third Edition, An introduction to epidemiology and biostatistics. Self Study Course 1978, consultado 26.01.2017

Reportagem da Folha de São Paulo, Cotidiano, assinada por Angela Boldrin, 26.01.2017 indica que o Ministério da Saúde confirmou 88 casos de febre amarela  na quinta-feira dia 26 de janeiro, o maior número em um ano desde que o Ministério da Saúde faz estatísticas, em 1980, portanto a maior epidemia desde 1942.  Superam os 85 casos do ano 2000. O Ministério e a mídia ainda chamam de surto de febre amarela silvestre, porém este raciocínio é turvo, tendo em vista que os números de 2017 foram atingidos em poucas semanas, talvez um mês, e já envolvem centro-oeste e sudeste. Portanto não está clara a diferença entre surto e epidemia de febre amarela. É óbvio que em uma doença tão grave não podemos esperar pelos casos confirmados. Podemos, ou temos a obrigação de agir em cima de diagnóstico clínico. Desta forma já passam de 500 casos em 5 estados de 3 regiões geográficas do país. Logo nem será mais uma epidemia, e sim uma endemia. Como não há Olimpíada, nem Obama, ninguém mais presta atenção ao Brasil.

Na verdade parece que o Brasil não tem mais um epidemiologista ou um especialista em saúde pública, pois ninguém mostrou o gráfico de incidência, o histograma mencionado acima. A história do surto e epidemia de febre amarela que está sendo contada pelas autoridades só piora. Se for contabilizar que estes casos começaram no início de janeiro de 2017, como algumas autoridades estaduais de Minas Gerais alegam, a incidência é incrivelmente alta, estamos em frente a um problema gravíssimo e muito agudo. 500 casos em 20 dias é uma barbaridade. Pior que o Ebola. Por outro lado, se na verdade estes casos iniciaram em fins de novembro, início de dezembro, houve um grande caso de omissão das autoridades, talvez justificada em parte pelo troca-troca administrativo.

Em 2019 a situação é de endemia. Ocorrem casos em todo o Brasil, em pequenos grupos que ameaçam cidades de pequeno, médio e grande porte. Os casos parecem ser silvestres, originados das florestas da Serra do Mar desde o início desta situação em 2016. O Ministério da Saúde confirmou 383 casos e uma morte entre julho de 2018 e o carnaval de 2019. Esta é uma grande diminuição de casos comparado com os últimos anos. Foram 1266 casos e 415 mortes entre julho de 2017 e julho de 2018; 1.127 casos e 328 óbitos no período de 1º julho de 2016 a 3 de abril de 2017. No mesmo período até 2016, foram confirmados 691 casos e 220 óbitos.

Meu conhecimento pessoal de neuroepidemiologia é antigo. Abaixo estão algumas das minhas publicações neste campo, em livros e com co-autores da cúpula da neuroepidemiologia internacional. Fiz isso por interesse científico e como uma gentileza a colegas internacionais durante o tempo que trabalhei como voluntário para a International League Against Epilepsy; não havia outro brasileiro que pudesse ceder nossos dados, tão importantes e interessantes, e ao mesmo tempo dominasse as línguas necessárias para escrever estes artigos e capítulos e interagir com colegas de países muito diferentes.

Bittencourt PRM, Gracia CM, Lorenzana P. Epilepsy and parasitosis of the central nervous system. In: Pedley T and Meldrum B (editors), Recent Advances in Epilepsy, volume IV, Churchill-Livingstone, Edinburgh, pp 123-160,  1988.

Bittencourt PRM, da Costa JC e Gomes MM. Manual: epilepsia e o generalista. Publicação do Ministério da Saúde (1990).

de Bittencourt PRM. Epilepsy and Tropical Disease. in Clifford Rose F. Recent Advances in Tropical Neurology. Elsevier, Amsterdam, 1995

Carpio A and de Bittencourt PRM. Epilepsy in the Tropics. in Chopra JS (ed) and Sawhney IMS. Tropical Neurology. BI Churchill-Livingstone, 1999

AN Ribeiro Pinto and Paulo Rogério M de Bittencourt. Aspects of Etiology: Infections and Postinfective Causes. in Wallace S and Farrell K. Epilepsy in Children. 2nd Edition. Arnold, London, 2004, 76-81

de Bittencourt PRM, Carpio A and Preux PM. Epilepsy in the Tropics. in Chopra JS (ed) and Sawhney IMS. Tropical Neurology. Elsevier Asia-Pacific, 2016

 

Dr Paulo Bittencourt