A história da família Bittencourt de Curitiba

História da família Bittencourt

A origem da história da família Bittencourt de Curitiba está no extremo norte da França. A pequena vila chamada Béthencourt fica a 16km de Cambrai, em Hauts de France, a 25km da fronteira com Bélgica. Atualmente com 800 habitantes, já existia no século X, e foi tomada pelos espanhóis antes de Napoleão, entre os séculos XVI e XVIII. Existem algumas outras pequenas vilas com o mesmo nome, que quer dizer “chácara do Beto”, “Bettonis Chortis”. Algumas tem história documentada que vai até os bárbaros terem invadido a Gália, no século 3 ou 4. É o caso de Béthencourt sur mer. Os bárbaros se estabeleciam, tornavam-se a aristocracia local, e passavam a serem chamados de Francos. Construíam castelos e se tornavam a linha de defesa contra inúmeros invasores, desde os romanos, em uma região sempre conflagrada. Ali estava o extremo norte do Império Romano Ocidental.

https://fr.wikipedia.org/wiki/Bethencourt-sur-Mer

A região norte da França na fronteira com a Bélgica foi invadida pelos vikings no século 6-9. Em 1257 André de Béthencourt fez uma doação de terras em Friville em favor do abade de Notre-Dame de Séry. Entre 1360 e 1370 a região foi dominada pelos ingleses e invadida pelo reino de Navarra. Invasões se sucederam até que a região foi muito afetada pela destruição causada pela 1ª Guerra Mundial. As batalhas do Somme e dos Ardennes foram bem por ali. Esta sucessão de guerras pode ser a explicação por que muitos habitantes, inclusive os Béthencourt, tiveram dificuldades judiciais e financeiras, e emigraram. Muitas destas vilas estão lentamente desaparecendo desde aquela época, não constam dos mapas analógicos e digitais mais completos, tem poucas centenas de habitantes.

https://es.wikipedia.org/wiki/Jean_IV_de Béthencourt

A história da família Bittencourt de Curitiba toma rumo ao Império Espanhol no século XV. Jean de Bethencourt IV aparece em 1402 como um dos conquistadores das Canárias, inicialmente como parte de bandos de piratas franceses que lutavam contra ingleses, depois com o título de “Senhor das Ilhas”. A conexão era forte com a corte espanhola, através da ordem de Calatrava. Eventualmente Jean IV de Béthencourt ficou conhecido como Rei das Canárias, embora seu Reinado tenha terminado em poucas décadas. Em Las Palmas existe hoje em dia uma pequena comunidade chamada Betancuria, onde está a Iglesia de Santa Maria de Betancuria.

https://fr.wikipedia.org/wiki/Jean_de_Béthencourt

John Mercer, 1973. Islands. Canary Islands, Furteventura. David and Charles, Devon, UK.

Os Bittencourt na França

Jean IV de Béthencourt nasceu em 1362 em Grainville la Teinturiere, um pouco mais ao sul do que as outras vilas Béthencourt, na costa da Normandia. Vendeu suas propriedades ali, em Vimeu e Paris para financiar a expedição às Canárias. A mim, parece um movimento semelhante a gaúchos e paranaenses que trocaram suas pequenas propriedades por enormes áreas no Mato Grosso e na Amazônia.

https://es.wikipedia.org/wiki/Le_Canarien

A família de Jean IV de Béthencourt é documentada desde 1240. São nobres locais, com títulos de barão, camareiro do Duque de Borgonha, camareiro do Rei da França. Existiram vários Jean, chamados de I, II, III, IV, e seus irmãos se estabeleceram na Espanha, em Valladolid, Galícia e Castilha. Jean IV também parece ser quem levou ao estabelecimento da família em terras espanholas e portuguesas, de maneira tão forte e definitiva que tonaram-se praticamente ibéricos emigrados para a América Latina. Jean voltou para a França, e várias fontes dizem que não deixou herdeiros nas Canárias. A conexão francesa da família Bittencourt de Curitiba, então, é até 1300-1500. Depois, os Bittencourt que vieram para a América Latina sempre foram ibéricos, território incluindo as ilhas atlânticas de portugueses e espanhóis.

Dando um salto aos dias atuais, na França, Liliane Schueller Bettencourt, é claro, herdou o Império L’Oreal de seu pai, e foi casada com André Marie Joseph de Bettencourt, falecido em 2007, originado da mesma região da Normandia e parte da mesma família dos Jeans. Tipicamente, André é considerado da alta burguesia católica normanda, educado interno em colégio marista em Paris, formado em Direito, Prefeito, Deputado, Senador, várias vezes ministro de estado dos governos de Gaulle e Pompidou.  Foi colega de François Mitterand e do pai de Liliane, Eugene Schueller, fundador da L’Oreal, na organização terrorista clandestina chamada Cagoule, de extrema-direita, anti-semita, anti-republicana, próxima do fascismo.

Note que Mitterand foi o presidente mais longevo dos franceses, sempre pelo Partido Socialista francês, se colocando como democrata de esquerda. Um dos maiores farsantes da história moderna. A descoberta de seu passado colaboracionista e fascista foi razão de seu declínio, já ao fim da última presidência. Muitos membros da Cagoule moraram no internato dos irmãos maristas na rue Vaugirard 104, centro de Paris, como André de Bettencourt. A Cagoule fazia atentados na década de 1930 em Paris com objetivo de se fazer por comunistas e assim incriminá-los. O pai de André, Victor, foi advogado na Cour d’Appel de Paris e conselheiro geral da província Seine-Inférieur.

https://fr.wikipedia.org/wiki/André_Bettencourt

Para entender como o nome familiar Béthancourt persistiu na península ibérica a ponto de adquirir uma natureza local, talvez seja importante entender que vários Bittencourt através dos anos foram membros da Ordem de Calatrava. Na época era uma ordem religiosa e militar fundada na cidade de Calatrava, na província de Ciudad Real, centro-sui da Espanha, quase na Andaluzia, com o objetivo de rechaçar os islâmicos e estabelecer o catolicismo na Espanha, com a ajuda dos franceses. Estas foram organizações que sucederam os templários quando as cruzadas terminaram, e deram sustentação ao emergente conceito de catolicismo.

https://en.wikipedia.org/wiki/Order_of_Calatrava

Uma assembleia geral em Cîteaux, próximo de Dijon, França, em 1187, deu aos Cavaleiros de Calatrava sua independência definitiva, aprovada no mesmo ano pelo Papa Gregorio VII. A ordem seguia o modelo cisterciano para irmãos leigos, além dos votos religiosos: silêncio no refeitório, dormitório e oratório. Abstinência 4 dias por semana. Vários dias de jejum durante o ano. Tinham ainda a obrigação de recitar vários padre-nossos durante o dia, dormir em suas armaduras, usar o manto branco cisterciano como sua roupa diária, com a cruz da flor de liz. Calatrava era submissa não à Abadia de Citeaux, mas sim à Morimond, província de Champagne, casa-mãe de Fitero. O Abade de Morimond tinha o direito de visitar as casas e reformar os estatutos de Calatrava. A maior dignidade da ordem, de Grande Frade ou Grande Prior, era sempre de um monge de Morimond.

https://fr.wikipedia.org/wiki/Abbaye_de_Morimond

A Abadia de Morimond é situada em Haute-Marne, França, onde foi fundada em 1115. Com as abadias de Cîteaux, La Ferté, Pontigny e Clairvaux formava o grupo das abadias primárias da ordem cisterciana, muito ligada aos papas. Tiveram um papa, e seguiam a regra de São Benedito e os costumes beneditinos.

A influência cisterciana e beneditina de Morimond na Espanha

https://fr.wikipedia.org/wiki/Abbaye_de_Morimond#L’influence_de_Morimond_en_Espagne

As colônias cistercianas no sul da França se estenderam para a Espanha devido à Afonso VII. Os monges franceses exploraram Toledo e Rioja. Através de Dom Didace Vélaquez fizeram contato com Sancho III de Castilha, filho de Afonso VII, que lhes propôs construir o castelo que ainda existe, chamado Calatrava la Vieja, para defesa contra os Almohades. Os tempos eram turbulentos na Espanha. Portugal se tornou na prática independente em 1143. A Reconsquista dos católicos por sobre os islâmicos andava para frente, mas a possibilidade da Espanha se fraturar em muitos pequenos reinados era real. A nobreza espanhola foi surpreendida quando Sancho, em nome de Afonso VII, “por inspiração divina”, doou a vila de Calatrava em perpetuidade a Deus, à Virgem Maria, à santa congregação de Cîteaux e ao Abade de Fitero. A doação incluiu montanhas, terras, água, com direito hereditário. Em 1163 os cavaleiros da ordem elegeram seu abade, Dom García, que foi a Cîteaux em setembro de 1164, visita que eventualmente resultou no reconhecimento da ordem pelo Papa Alexandre III. Ao retornar à Espanha Dom Garcia tomou conta de mais territórios, incluindo Almadén, Chillón, Cogolludo, d’Almoguera e Maqueda. Em 1187 o grande mestre da ordem, Nuño Pérez de Quiñones, voltou a Morimond por que Afonso VII de Leon e Castilha queria que a Ordem de Calatrava fosse submetida direto a Morimond. Assim foi feito. Ao fim do século XII a Ordem de Calatrava absorveu as Ordens de Aviz e Alcântara, de Portugal.

Os Bittencourt na Espanha e Portugal

O Livro do Armeiro Mor, de 1509, já tem o brasão de armas dos Betencor, considerado sinônimo de Bethencourt, na folha 78. Em 1586, na Ilha Terceira, existiam as terras dos Betencores. A Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, é o Palácio Bettencourt, construído em torno de 1700, onde a família morou.

Palácio Bettencourt, atual Biblioteca Pública de Angra do Heroísmo, Ilha Terceira, Açores

O mais brilhante membro da História da família Bittencourt parece ter sido Augustin de Betancourt y Molina, engenheiro nascido em Tenerife, nas Canárias já espanholas, em 1758, falecido em São Petersburgo em 1824. Era descendente de Jean IV, membro da Ordem da Calatrava, bisneto de Francisco de Betancourt y Castro, que foi ser governante da Venezuela. Sua irmã Maria também era muito produtiva em invenções de máquinas. Augustin foi enviado para Madrid, depois Paris e Londres, sempre investigando invenções e aprendendo novas técnicas, fundando a engenharia européia.

https://es.wikipedia.org/wiki/Agustín_de_Betancourt

Viveu junto à realeza espanhola, e chegou a ser Tenente-General, membro de ordens, sociedades e academias. Não constam esposa ou filhos em suas biografias. Sua capacidade como urbanista, engenheiro civil e militar, arquiteto e inventor o levou ao Império Russo, onde seria assessor pessoal do Czar Alexander, e terminaria seus dias deixando várias obras, como a ponte sobre a Málaya Nevka, as fábricas de armas de Tula e de canhões de Kazán, a draga de Kronstadt, os andaimes para a Catedral de San Isaac, a Coluna de Alejandro I,  o canal Betancourt de São Petersburgo, a Catedral da Transfiguracão de Nizhni Nóvgorod, a fábrica de papel moeda, o picadeiro de Moscou, a navegação a vapor no río Volga, sistemas de abastecimento de aguas, ferrovias, etc. Tem moedas, selos e até o asteróide Betankur em sua honra. Foi o Leonardo da Vinci da família.

Os Bittencourt em Curitiba

Para entender a história da família Bittencourt de Curitiba é indispensável a Genealogia Paranaense, uma coleção de 6 volumes produzidos pela Impressora Paranaense, escritos por Francisco Negrão entre 1927 e 1946, enquanto morava em Paranaguá. Estão disponíveis na Biblioteca Pública do Paraná e ficaram comigo em 2017. No 5º Volume, de 1946, encontra-se o Título Correa de Bittencourt, inaugurado pelo fidalgo português José Correa de Bittencourt, filho de Gaspar de Betancor, ligado aos reis de Espanha e das Canárias. Gaspar pode ser descendente de Gustavo Ximenes de Bettencourt, que recebeu do Infante Dom Henrque e do flamengo Jacomes de Bruges em 1456 uma gleba extensa de terras, o Vale dos Linhares, na ilha de São Bento, nos Açores. Pode ser um descendente do francês Jean, que teve problemas nas Canárias. Embora Jean IV não tenha filhos registrados nos domínios espanhóis, é pouco provável que tenha enfrentado toda esta confusão sozinho e sem procriar.

capa de volume da Genealogia Paranaense de Francisco Megrão
capa de um volume da Genealogia Paranaense

É possível dizer que Gaspar de Betancor viveu no século 18 nos Açores, de uma família que pode ter circulado entre Portugal, Canárias e Espanha, sem conexão com a França. Belgas da região de Flandres, muito próxima da região dos Béthancourt na França, tinham uma colônia nos Açores, que foi disputada por portugueses e espanhóis durante os séculos 15 a 19. Já desde o fim do século 16 havia um problema de excesso de população nos Açores, que levou a ondas de emigração para o Brasil. Assim ocorreu com o filho de Gaspar, José, que trouxe a história da família Bittencourt para o âmago do Império Espanhol, mais longe ainda do norte da França. José Correa de Bittencourt veio via Paranaguá, já casado, com um filho pequeno e outro já moço, e se estabeleceu em Curitiba em torno de 1810. Os filhos foram Manoel José da Cunha Bittencourt e João José Correa de Bittencourt, nascidos na Ilha Graciosa, nos Açores, ambos militares.  Os dois se casaram em Curitiba com mulheres influentes, em 1819 e em 1837. Dâmazo Correa de Bittencourt é filho de João José, e pai de Aristheu Correa de Bittencourt, meu avô. Portanto Dâmazo é meu bisavô, e vem a ser um dos fundadores do Teatro São Theodoro, que viria a ser o Teatro Guaíra. Era comediógrafo e instruía escravos em português e aritmética visando sua alforria mais precoce. João José, meu trisavô, é nascido nos Açôres. José Correa de Bittencourt é meu tataravô, e Gaspar de Betancor é meu pentavô. Vários destes tiveram muitos filhos e filhas, e tinham funções burocráticas, políticas, militares, cartórios, na emergente província. Outra fonte de confusão é que existem muitos Dâmazos. Meu bisavô, o do Teatro, teve 9 filhos, um Dâmazo e uma Damazina, e 8 netos com seu nome. Parece uma característica familiar, são muitos filhos homens. Eu mesmo, tenho 3 homens e uma mulher. Meu avô Aristheu, teve 7 homens e duas mulheres.

Uma pessoa importante na história da família Bittencourt de Curitiba parece ter sido o Coronel Joaquim José Bellarmino de Bittencourt, político, juiz, muito influente na metade do século 19. Um seu irmão, João Gualberto de Bittencourt, militar e prefeito de Colombo, formou a família Espínola de Bittencourt. Acredito que foi deste ramo, de Bellarmino, que saíram os Bittencourt de Ponta Grossa e Castro. Eram primos de Damazo. Eles eram dois dos 7 filhos de Manoel José, enquanto nós somos descendentes do João José, os dois rapazes que chegaram jovens a Curitiba nos primeiros anos do século 19, com o fidalgo original, José Correa de Bittencourt. Os descendentes de Manoel José, parecem ter tido uma certa superioridade com respeito aos descendentes do irmão João José, 20 anos mais novo. Tiveram cargos mais elevados nos segmentos político, militar e judicial da época, e maior envolvimento com as indústrias e fazendas. Bellarmino era dono do 1º cartório de Curitiba, onde Damazo era escrivão.

Toda esta primeira geração de brasileiros, os 7 filhos de Manoel José e os 9 de João José, casaram-se em Curitiba em torno de 1850. A terceira geração, a do meu avô Aristheu e seu irmão Aristóxenes, já viveram na virada para o século 20. A 4ª geração, de meu pai, viveu entre 1920 e 1980. A minha geração, agora na faixa dos 60+ anos, vivemos a virada para o século 21. Já existem duas gerações além de nós, os filhos e netos. Alguns destes vão durar até o século 22, e continuar a história da família Bittencourt.

Dr Paulo Bittencourt